Tudo aquilo que está em negrito + itálico é composto por notas de percepções e pensamentos que tive após reler minhas anotações.
Meu campo é feito todos os sábados, em algum paredão no Helipa. Objetivos do estudo:
Objetivo geral: Investigar as formas pelas quais a estética e o consumo podem criar coletividade e promover uma visão política de potencial transformador, para além das dinâmicas de consumo e mercado.
Objetivos específico:
1. Avaliar semelhanças ou divergências nas visões políticas da identidade funkeira.
2. Examinar a capacidade da estética em fomentar a coletividade.
3. Explorar a forma de consumo em relação a estética e aprofundar no chamado “sonho de consumo” muito citado em letras de funk.
4. Mapear os principais temas-chave dentro das letras de funk que influenciam os jovens na sua visão de mundo.Em resumo:
Esse estudo busca explorar as visões e percepções dos jovens envolvidos na cultura funk em relação a estética, consumo e política, entendendo como esses elementos se entrelaçam na construção da identidade desses jovens de 15 a 18 anos e de 18 a 24 anos frequentadores do Baile do Helipa. O objetivo é criar um movimento político coletivo que envolva, expresse e identifique essa comunidade através da estética. A relevância do estudo está na capacidade de desenvolver um movimento autêntico, formado e criado a partir dos próprios jovens, ampliando suas vozes dentro e fora das comunidades por meio de ações reais que impulsionam a mudança. No setor privado, essa compreensão possibilita a co-criação, gerando políticas e práticas sociais que se alinhem ao público, além de reformular estratégias que atendam às necessidades e desejos, estabelecendo um diálogo entre o mercado e a juventude funkeira.
03fev24
Como numa armadilha que criei, estava com medo. Medo de ir pra uma festa sozinha, se me acharia lá, como seria. Estava ansiosa com tantas possibilidades que poderiam acontecer assim que eu pisasse meu pé pro lado de fora da minha casa, mas fui, tinha prometido que iria.
A página oficial do baile do Helipa divulgou o aniversário de um MC que aconteceria na Rua da Mina, esse então se tornou meu destino. Meu caminho até Heliópolis é pegar a linha vermelha até o Brás, depois fazer baldeação pro trem sentido Rio Grande da Serra, descer em Tamanduateí e pegar um ônibus. Simples.
Saí de casa por volta das 21h40, bem cedo. Até descer no Tamanduateí não vi ninguém que pudesse ser identificado como “pessoa que está indo pro baile”, minha expectativa era observar mais jovens fazendo o mesmo caminho que eu, mas não aconteceu.
Às 22h22 desci no Tamanduateí e agora sim, diversas pessoas, normalmente jovens de 14~17 anos. Roupas de todo tipo, me sentia indo pra um desfile de moda. A produção estética aqui não é coisa básica, é como se fosse (ou é) O evento. Um grupo de mulheres me chamou atenção, cada uma em um estilo diferente: uma estava com um blusão enorme que ia até seus joelhos, uma calça apertada e um tênis mizuno, as outras duas estavam com saias justas e cropped, uma mais colorida e outra no preto e branco. Um jovem estava todo cyclonado em um conjunto preto e amarelo. Outros jovens eram uma mistura de gótico e mandrake, num jogo estético. Me sentia deslocada, pouco preparada esteticamente pro baile, simples demais. Nota: Nesse ponto das roupas, em um primeiro momento coloco que não existe um segmento por gênero fechado de “mulheres se vestem com roupas justas para realçar a silhueta e homens camuflam com roupas largas”. Na verdade me pareceu mais amplo do que é colocado em estudos etnográficos da área.
Assim que desci no Tamanduateí, vou seguindo o fluxo dos jovens, nesse momento já não sei mais pra onde estou indo. Então todos fazem baldeação pra linha verde, depois descendo na estação Sacomã. Aqui percebi que só o campo nos leva pro caminho certo e que o Google Maps tá por fora. Todas as escadas rolantes estão paradas, então fomos subindo as escadas, que eram umas três enormes. Nesse ponto existia uma animação de todos, gente falando muito alto, gritando, a festa já partia dali. Chegamos na saída do metrô, o grupo seguiu por fora e eu fiquei do lado de dentro, queria observar outros grupos antes de ir na direção do baile. Enquanto esperava, tinha três guardinhas do metrô do lado de fora, não dava pra ouvir do que estavam falando. Fiquei lá por 30 minutos, os poucos grupos que chegavam, paravam na parte de fora do metrô, naquele momento tinha umas 20-25 pessoas paradas conversando. Comecei a achar esquisito e decidi chamar um Uber (foi aqui começou todos os meus erros). Enquanto o carro não chegava, fui pro lado de fora esperar.
Parada do lado de fora do metrô, ouço a conversa dos guardinhas: “como? só tem jovem, tudo pequena, olha isso… Como que falam pros pais que estão aqui?”, todos reprovando aquele movimento, com certa indignação e ódio no tom de voz e na pose gestual. “Quer ver o que vou fazer? Vamos ali, vou puxar aquele moleque”. Os três mulas descem uma escadinha de 5 degraus que dá pra calçada e vão até o grupo de jovens, que já estão posturados, prontos pra enfrentar mais uma abordagem dos guardinhas. A “autoridade” se aproxima de um jovem, pergunta o que ele tem na mão, depois se afasta e vai embora, dizendo aos dois mulas que “achei que aquilo na mão dele era alguma droga, alguma coisa”, mas o fato é que por um segundo pude sentir o medo do guardinha. Eles não se afastaram por que de fato se confundiram com algo, até por que não são policiais, são guardas do metrô, não está no escopo deles fazer isso. Mas a aproximação deles com o grupo foi uma afronta, num jogo de olhares e posturas de enfrentamento. Eles recuaram, e quando voltaram ao posto inicial, ficaram calados. Minutos depois meu Uber chega. Nota: “Olha os guardinhas” — foi a frase que mais ouvi na saída do metrô. Guardinhas do metrô, ou seja, nem são policiais, mas agem como tal. Terrível, assombroso. É exatamente o enfrento com a “autoridade”, a marra e o gingar de lidar com isso. Como se referem, o que acham. Aqui está uma potência política.
Coloquei como ponto final a Estrada das Lágrimas. Assim que desci, vi do outro lado uma rua mal iluminada e uma tabacaria de esquina, que já estava bem movimentada por jovens usando narguilé, aquele cheiro bom e forte de tutti frutti . Abri o Google Maps, era só seguir reto por menos de 5 minutos que chegaria no baile. Então entro na rua mal iluminada e vou andando, um pouco receosa por não ver tanto movimento, será que tô indo pro lugar certo? Fui seguindo, e lá tinha sons de todo tipo. Era o som do giro de moto, som do bar, som em frente as casas, com famílias na rua curtindo forró, pagode, funk, trap. Aquele lugar estava vivo, animado, era sábado a noite. Nota: “Imagine quem mora perto do baile” — Não existe consenso, assim como todo tema complexo. Indo em direção a um paredão, o caminho percorrido é de caixas de som bem altas, onde as próprias famílias estavam “no controle”. Ou seja, o baile não é formado por “jovens que causam baderna”, existe famílias em frente as suas casas “badernando” em conjunto. Assim como tem famílias que não participam disso.
Cheguei no baile, que não estava rolando. Não tinha ninguém. Era um bar de esquina, com um som alto tocando forró, alguns homens acima de 50 anos bebendo lá dentro, só isso. Abro o Instagram oficial do baile, sim, tô no lugar certo. E agora? Nota: Vi vários jovens indo “ao baile”, mas quando cheguei no paredão divulgado na página não tinha quase ninguém, ou seja, existia ali algum outro evento ou percurso feito por esses jovens que eu não acompanhei. A divulgação na página oficial do baile não é 100% segura — tem patrocínios e pagantes ali. Mas isso me trouxe a pergunta; do que é feito o baile? Se a divulgação do aniversário que tinha um grande som não tinha jovens, o que constitui um baile funk, do que é formado?
Bom, precisava voltar pra Estrada das Lágrimas. Então sigo reto pelo mesmo caminho que tinha feito, mas vou percebendo que estava indo pro lugar errado, comecei a ficar meio ansiosa de me perder ali dentro. Se perder na rua é fácil, você rapidamente percebe que está indo pro lugar errado e consegue se achar com mais facilidade, agora se perder na favela quando você não é de lá é mais difícil, as casas são mais similares e até o comércio é um pouco igual. Quando percebi que me perdi, parei e perguntei pra uma família que estava curtindo um churrasco com som alto. A mulher me abriu um sorriso e disse “é só seguir reto por ali”, fiquei receosa por que pra onde ela apontava estava uma rua fechada, e logo pensei “reto aonde?”, mas escutei as instruções e retomei meu caminho. Era reto, mas tinha duas curvas leves que precisava fazer. Nota: Me senti segura lá. Não estou descolada daquilo que já vivi — a favela é o lugar mais seguro da cidade, quando não está em guerra com a polícia. Moro em São Paulo tem dois anos e nunca fiquei tanto tempo com o celular na mão como fiquei em Heliópolis.
Voltei pro ponto inicial, em frente a tabacaria, pensando no que fazer em seguida. Decido então voltar pro metrô, que foi o último ponto que identifiquei pessoas indo pro baile. Ao chegar lá, já não via o mesmo movimento, alguns jovens subiam as escadas em direção a saída, um deles falou “nossa, olha os guardinhas, que merda… não, não, vou ficar aqui pra fumar”, enquanto ia pro outro lado. Como vi pouca gente, desci as escadas e fiquei próximo a catraca. Era por volta das 23h, então penso em voltar pra casa.
Enquanto voltava, fui retomando anotações que fiz no bloco de notas do celular. Foi o primeiro dia, primeiro campo. Tive alguns erros que quero listar:
Preciso ser rua. Nesse campo não dá pra ficar usando Uber, muito menos trajeto do Google Maps. É acompanhar o fluxo.
O caminho real não é sair do metrô, mas ir ao terminal Sacomã para pegar o ônibus. Provavelmente lá terá grupos maiores de jovens.
Preciso me entrosar em grupo, pra ter mais segurança e ampliar contatos que possam ser meus guias lá dentro.
Compartilho aqui meu diário de campo para que se torne um projeto vivo, de alterações que não fiquem guardadas somente comigo. Se colocar exposta, ter outras pessoas com outras referências apontando ou se opondo aos meus pensamentos aqui colocados. Por mais que nada disso aconteça, sinto que isso também trás um compromisso pro meu trabalho, de ter que atualizar essa “biblioteca” semanalmente.